De tanto que se falou sobre os evangélicos nas últimas semanas, nos jornais e nas
Homofóbicos, cortejados pela presidente,
fundamentalistas. Massa de manobra de Silas Malafaia, conservadores,
determinantes no segundo turno das eleições. De tanto que se falou sobre
os evangélicos nas últimas semanas, nos jornais e nas redes sociais, talvez caiba uma pergunta: afinal, quem são “os evangélicos”?
A resposta mais honesta não poderia ser
mais frustrante: os evangélicos são qualquer pessoa, todo mundo, ou,
mais especificamente, ninguém. São uma abstração, uma caricatura pintada a partir do que vemos zapeando pelos canais abertos misturado ao que lemos de bizarro nos tabloides da internet
com o que nosso preconceito manda reforçar. Dizer que “o voto dos
evangélicos decidirá a eleição” é tão estúpido quanto dizer a obviedade
de que 22,2% dos brasileiros decidirão a eleição. Dizer que “os evangélicos são preconceituosos”, significa dizer o ser humano é preconceituoso. É não dizer nada, na verdade.
Acreditar que há uma hegemonia de
pensamento, de comportamento ou de doutrina evangélica é, em parte,
exatamente acreditar no que Silas Malafaia gosta de repetir, mas é, em
parte, desconhecer a história. A diversidade de pensamento é a razão de
existir da reforma protestante. E continuou sendo pelos séculos
seguintes, quando as igrejas reformadas do século 16 deram origem ao
movimento evangélico, estes aos pentecostais e estes aos
neopentecostais, todos microdivididos até o limite do possível, graças,
novamente, à diversidade de pensamento – sobre forma de governo, vocação
e pequenos pontos doutrinários. Boa parte destas, sem organização
central, sem “presidência” nem representante, com as decisões sendo
tomadas nas comunidades locais, por votação democrática.
Assim como não existe “os evangélicos” também não
existe “os pentecostais”, nem “os assembleianos”: dizer que Malafaia é o
“papa da Marina Silva” como disse Leonardo Boff, apenas porque ambos
são membros da Assembléia de Deus, é ignorar que, por trás dos 12,3
milhões de membros detectados pelo IBGE, a Assembleia de Deus é rachada
entre ministérios Belém, Madureira, Santos, Bom Retiro, Ipiranga, Perus e
diversos outros ,
cada um com seu líder, sua politicagem e sua aplicação doutrinária. A
Assembleia de Deus Vitória em Cristo de Malafaia, aliás, sequer pertence
à Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil.
Ignorância parecida se manifesta em relação ao
uso do termo “fundamentalista”, como sinônimo de “literalista”, aquele
incapaz de metaforizar as verdades morais dos textos sagrados. A
teologia cristã debate há dois mil anos sobre a observação,
interpretação e aplicação dos escritos sagrados, quais são alegóricos e
quais são históricos, quais são “poesias” e quais são literais. O
deputado Jean Wyllys, colunista da Carta Capital,
do alto de alguma autoridade teológica presumida, já chegou à sua
conclusão: o que não for leitura liberal, é fundamentalista e, portanto,
uma ameaça às minorias oprimidas. (Liberalismo teológico é uma corrente
teológica do final do século 19 que lançou uma leitura crítica das
escrituras, completamente alegorizada, negando sua autoridade
sobrenatural, a existência dos milagres, e separando história e
teologia).
Só que isso simplesmente não é verdade. Dentro da
multifacetação das igrejas de tradição evangélicas, há as chamadas
“inclusivas”, mas há diversas igrejas históricas, tradicionais,
teologicamente ortodoxas, que acreditam nos absolutos da “sola
scriptura” da Reforma Protestante, mas que têm política acolhedora e
amorosa com as minorias. Algumas criaram pastorais para tratar da
questão homossexual, outras trabalham para integrá-los em seus quadros
leigos; outros, como disse o pastor batista Ed René Kivitz, estão mais
dispostos a aprender como tratar “uma pessoa que está diante de mim
dizendo ter sido rejeitado por sua família, pelo meu pai, pela minha
igreja” do que discutir a literalidade dos textos do Velho Testamento.
O panorama da questão pode ser melhor entendido
em Entre a cruz e o arco-íris: A complexa relação dos cristãos com a
Homoafetividade (Editora Autêntica), livro qual tive a honra de editar.
Nele, o pastor batista e sociólogo americano Tony Campolo,
ex-conselheiro do presidente Bill Clinton, diz: “Se você vai dizer à
comunidade homossexual que em nome de Jesus você a ama (...) não teria
que lutar por políticas públicas que demonstrem que você as ama? Pode
haver amor sem justiça? Eu luto pela justiça em favor de gays e
lésbicas, porque em nome de Jesus Cristo eu os amo.” Campolo,
entretanto, faz distinção entre direitos e casamento: “O governo não
deve se envolver nem declarar, de forma alguma, o que é casamento, quem
pode ou não se casar”, ele disse. “Governo existe para garantir os
direitos das pessoas. Casamento é um sacramento da igreja – governos não
devem decidir quem deve ou não receber esse sacramento.” Campolo
acredita que esta será a visão dominante entre cristãos americanos “em
cinco ou seis anos”.
Entre os evangélicos brasileiros há quem pense
desde já como Campolo – distinguindo união civil de casamento. Há quem
pense de forma ainda mais radical: que a união civil, com implicações
patrimoniais e status de família, deveria valer não apenas para casais
homossexuais, mas para irmãos, primos ou quem quer que se entenda como
família. Há quem defenda o acolhimento dos gays nas igrejas, mas o
celibato para eles. Quem, embora sabendo que mais da metade das famílias
brasileiras já não são no formato pai-mãe-filhos, ainda luta para
restabelecer esse padrão idealizado. Há, sim, quem acredite que o seu
conjunto de doutrinas e o seu modo de vida são fundamentais. Há aqueles
que, enquanto estamos discutindo aqui, está mais preocupado se a melhor
tradução do grego é a João Ferreira de Almeida ou a Nova Versão
Internacional. E há quem acorde diariamente acreditando ser porta-voz do
“povo de Deus”, pague espaço em redes de televisão para multiplicar
esse delírio (mas, a julgar pelo 1% de intenção de voto do Pastor
Everaldo, somente ativistas gays e jornalistas desmotivados acreditam
nesse discurso). Esses são “os evangélicos”.
Na fatídica sexta-feira em que o PSB divulgou seu
programa de governo, enquanto Malafaia gritava no Twitter em CAPSLOCK
furibundo, o pastor presbiteriano Marcos Botelho, postou: “Marina, que
bom que vc recebeu os líderes do movimento LGBTs, receba as
reivindicações com a tua coerência e discernimento de sempre e um
compromisso com o estado laico que é sua bandeira. Vamos colocar uma
pedra em cima dessa polarização ridícula entre gays e evangélicos que só
da IBOPE para líderes políticos e pastores oportunistas.”
Botelho não representa “os evangélicos” porque
não existe “os evangélicos”. Mas Marcos Botelho existe e é evangélico.
Assim como existe William Lane Craig, o filósofo que convida
periodicamente Richard Dawkins para um debate público, do qual este
sempre se esquiva; existe o geneticista Francis Collins vencendo o
William Award da Sociedade Americana de Genética Humana; existe Jimmy
Carter, dando aula na escola bíblica no domingo e sendo entrevistado
para a capa da Rolling Stone por Hunter Thompson na segunda-feira;
existe o pastor congregacional inglês John Harvard tirando dinheiro do
próprio bolso para fundar uma universidade “para a honra de Deus” nos
Estados Unidos que leva seu sobrenome; existe o pastor batista Martin
Luther King como o maior ativista de todos os tempos; existe o jovem
paulista Marco Gomes, o “melhor profissional de marketing do mundo”,
pedindo licença para “falar uma coisa sobre os evangélicos”.
E existe o Feliciano, o Edir Macedo, a Aline Barros, o Thalles Roberto,
o Silas Malafaia e o mercado gospel. Como existe bancada evangélica,
mas existem os que lutaram pela “separação entre igreja e estado” na
constituição, e existem os que acreditam que levar Jesus Cristo para a
política é trabalhar não para si, mas para os menos favorecidos.
Existe o amor e existe a justiça, como existe o
preconceito, o dogmatismo, o engano, o medo, a vaidade e a corrupção.
Não porque somos evangélicos, mas porque somos humanos.
* Ricardo Alexandre
é jornalista e escritor, radialista e blogueiro, Prêmio Jabuti 2010,
ex-diretor de redação das revistas Bizz, Época São Paulo e Trip. E é
membro da Igreja Batista Água Viva em Vinhedo, interior de São Paulo.
Fonte: Carta Capital